o sorriso estava ali, impresso em um pedaço velho e empoeirado de papelão
era testamento de um tempo quase esquecido, onde as poucas memórias já pareciam surgir em sépia
o vestido era comportado, como mandava a época, com um chapéu de pano sobre os cabelos lisos, e bordas trabalhadas com discretos adornos
definitivamente era um contraste com a mulher que se fazia ver no reflexo do espelho
as cores agora eram bem mais reais, e o sorriso sumira sem deixar vestígios
restara no entanto, a postura austera e uma certa imponência
as caixas abertas exalam bem mais que poeira, e ela se deixa ali, se encarando pequena, de vestido comportado e sonhos modestos
agora, no topo do mundo, nada lhe despertava o sorriso conservado em celulóide
seria quase frígida, não fosse pela presença sútil dos netos, que ocasionalmente pincelam alegria pelos aposentos
mas em 10 dos 12 meses do ano ela passa os dias assim, em tempos já findos
solitária, recria os bailes de sua época, bebendo gin e dançando com rapazes de vento, mas sem nunca exibir-lhes os dentes
"uma dama não pode sorrir pra qualquer um" lhe dissera o pai, em uma de suas muitas sessões disciplinares com o cinto
conselho que carregara contigo ao longo do tempo, comprimindo os lábios sobre as pastilhas ósseas por todos os 30 anos de casamento
seu marido lhe tentava, oferecia flores, chocolates, sonatas ao piano, e até mesmo algumas piadas imorais, mas ela resistia, incólume
não é que fosse fria, era até mesmo demasiadamente afetuosa, mas algo em sua constituição lhe impedia de agir de forma diferente
tratava bem os filhos, limpava-os e banhava-os com grande habilidade, só não lhes sorria, o que a tornava uma péssima leitora de histórias pra dormir
portanto com o fluir dos anos, os impulsos de sorrir lhe abandonaram, assim como os filhos e marido, todos a procura de ares mais alegres
por isso ela estava ali, se deixando encarar aquele raro registro imagético de seus dentes
havia re-descoberto a foto em meio a sua rotineira sessão de organização de lembranças, onde permeava a imensa casa com portas retratos de imagens suas, todas obviamente com o semblante sério e a postura impecável
mas aquela garota, aquela menina que um dia fora, estava desafiando a ordem das coisas
definitivamente não haveria um lugar para ela nas prateleiras, ficaria deslocada
seria uma afronta aos anos em que lutara contra seus impulsos, uma negação de sua dedicação ferrenha aos ensinamentos de seu pai
não, isso não podia continuar assim.
os vizinhos disseram, em uma entrevista ao jornal local no dia seguinte, que ouviram altas gargalhadas da casa em chamas.
o corpo de bombeiros conclui que a causa do incêndio fora uma fotografia antiga, embebida de químicos inflamáveis e deixada propositadamente sobre as chamas do fogão
o enterro será realizado sem o corpo presente
até hoje, ninguém afirma ter visto dona Gentileza sorrir.
1 comments:
Fazia tempo que eu não passava por aqui. Vou ler mais depois (agora tá tarde, vou dormir).
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