Gentileza

Monday, July 27, 2009
Posted by UD

o sorriso estava ali, impresso em um pedaço velho e empoeirado de papelão


era testamento de um tempo quase esquecido, onde as poucas memórias já pareciam surgir em sépia

o vestido era comportado, como mandava a época, com um chapéu de pano sobre os cabelos lisos, e bordas trabalhadas com discretos adornos

definitivamente era um contraste com a mulher que se fazia ver no reflexo do espelho

as cores agora eram bem mais reais, e o sorriso sumira sem deixar vestígios

restara no entanto, a postura austera e uma certa imponência

as caixas abertas exalam bem mais que poeira, e ela se deixa ali, se encarando pequena, de vestido comportado e sonhos modestos

agora, no topo do mundo, nada lhe despertava o sorriso conservado em celulóide

seria quase frígida, não fosse pela presença sútil dos netos, que ocasionalmente pincelam alegria pelos aposentos

mas em 10 dos 12 meses do ano ela passa os dias assim, em tempos já findos

solitária, recria os bailes de sua época, bebendo gin e dançando com rapazes de vento, mas sem nunca exibir-lhes os dentes

"uma dama não pode sorrir pra qualquer um" lhe dissera o pai, em uma de suas muitas sessões disciplinares com o cinto

conselho que carregara contigo ao longo do tempo, comprimindo os lábios sobre as pastilhas ósseas por todos os 30 anos de casamento

seu marido lhe tentava, oferecia flores, chocolates, sonatas ao piano, e até mesmo algumas piadas imorais, mas ela resistia, incólume

não é que fosse fria, era até mesmo demasiadamente afetuosa, mas algo em sua constituição lhe impedia de agir de forma diferente

tratava bem os filhos, limpava-os e banhava-os com grande habilidade, só não lhes sorria, o que a tornava uma péssima leitora de histórias pra dormir

portanto com o fluir dos anos, os impulsos de sorrir lhe abandonaram, assim como os filhos e marido, todos a procura de ares mais alegres

por isso ela estava ali, se deixando encarar aquele raro registro imagético de seus dentes

havia re-descoberto a foto em meio a sua rotineira sessão de organização de lembranças, onde permeava a imensa casa com portas retratos de imagens suas, todas obviamente com o semblante sério e a postura impecável

mas aquela garota, aquela menina que um dia fora, estava desafiando a ordem das coisas

definitivamente não haveria um lugar para ela nas prateleiras, ficaria deslocada

seria uma afronta aos anos em que lutara contra seus impulsos, uma negação de sua dedicação ferrenha aos ensinamentos de seu pai

não, isso não podia continuar assim.

os vizinhos disseram, em uma entrevista ao jornal local no dia seguinte, que ouviram altas gargalhadas da casa em chamas.

o corpo de bombeiros conclui que a causa do incêndio fora uma fotografia antiga, embebida de químicos inflamáveis e deixada propositadamente sobre as chamas do fogão

o enterro será realizado sem o corpo presente

até hoje, ninguém afirma ter visto dona Gentileza sorrir.











 



1 comments:

Lucas Alan Pinto said...

Fazia tempo que eu não passava por aqui. Vou ler mais depois (agora tá tarde, vou dormir).